domingo, 28 de fevereiro de 2010

O sátiro sutil do nariz paulista de Minas

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Mais uma dose de Campos de Carvalho, . . .

o cateto das hipotenusas do Triângulo. . .

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Vaca de nariz sutil, publicado em 1961, foi o romance que chamou a atenção de vários ficcionistas de renome e críticos literários para o estilo único de Campos de Carvalho, projetando nacionalmente o surreal romancista de Uberaba.

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Eis alguns trechos do Capítulo 11, em que o personagem-narrador vai estar com a adolescente Valquíria onde ela mora – no cemitério cujo zelador é seu pai, do qual o desalentado e cético ex-combatente ficara amigo numa noite chuvosa, na primeira cena do livro:

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O seio esquerdo de Valquíria na minha mão: um ovo. AQUI JAZ BALTHAZAR PATINO DOS...

O velho foi ver o desfile, nas grandes datas ninguém se lembra dos mortos, só dos grandes mortos, como se houvesse mortos grandes e pequenos: nem mesmo se morre nas grandes datas, o cemitério é um verde límpido campo na primavera, até o vento se pôr a ruflar.

Não se trata de uma traição; traição seria se não estivesse com o seio de Valquíria na mão, aquecendo-o como a uma rola assustada: sinto-lhe o coração palpitando na ponta dos dedos, nem um instante se acelera ou se retrai, é um pêndulo marcando a passo a fuga do tempo – o tempo que aqui não conta e tem a idade dos mortos. A calma de Valquíria contrasta com o seu olho inimigo, são duas criaturas que respondem diferente ao apelo da minha angústia, a uma eu a mataria sem piedade e me faria mil vezes matar pela outra: a verdadeira: a única. De todos os mistérios, este é o mais insondável que conheço e desconheço, é meu este susto e não do seu coração, este silêncio também é meu e não dos mortos: devo estar lívido e terrível. Não sei o que faça da minha mão, talvez já nem mais me pertença, posso ter sido atraído a um ardil sem nome, o olho de Valquíria arrastando-me à minha perdição, ele e eu presas do mesmo sortilégio, do mesmo medo.

Vim ao seu encontro como um moribundo que transpusesse os umbrais de sua morada, (...) Junto ao túmulo, como se me esperasse havia séculos, Valquíria não esboçou uma palavra, a cabeça docemente pendida para a esquerda: tomou-me da mão e, como se cumprisse um rito, colocou-a de leve sobre o seio.

(...)

O velho vendo o desfile, isso sim é uma traição: como pastor de mortos deveria saber melhor do que eu, que sou apenas um deles.

(...)

A menina não suporta a multidão, e quem suporta? – dá-lhe uma angústia que nem sei como explicar, pois eu sei muito bem, no carnaval os mascarados que vêm expiar no portão deixam-na em estado de pânico, a mim me deixam o ano inteiro – no dia de finados há que fechá-la dentro de casa, e é o que me faço.

Deixar Valquíria assim à solta entre os mortos é que não parece justo, sozinha é uma coisa e entre os mortos é outra, suas raízes já cresceram entre eles e o seu sonho é povoado dos seus sonhos: um belo dia ela se enterra a si mesma, cova aberta é o que não falta, até parece que os responsáveis sentem prazer em assustar os vivos: irresponsáveis é o que são.

Esse seu outro olho é tão inimigo quanto meu, arrasta-a para onde quer e não para onde ela quer, ainda agora me odeia porque a vê na minha retina e já não a sente tão desamparada, o seio na minha mão como se fosse uma pedra, eu mesmo uma catapulta. Assim à espreita ainda é mais sórdido e repelente, poderia se quisesse arrancá-lo com a outra mão e ainda acabarei fazendo-o: na guerra como na guerra, não é meu este provérbio mas agora é meu. A calma me volta como nos momentos mais decisivos, conheço-me o bastante para saber do que sou e do que não sou capaz: afasto a mecha de cabelos, e ei-lo à minha frente como uma fera acuada: OU ELE OU EU.

Valquíria está chorando com o seu olho, uma lágrima apenas, duas: sua mão aperta mais a minha sobre o seio, uma carícia mais do que um apelo – é de alegria esse seu pranto, se não de amor. O sol no rosto torna-a quase imaterial, a boca aberta para o que não sabe ou não pode dizer, as narinas arfantes: – como uma fúria eu sorvo esta alma que assim se entrega e se recusa, mordo estes lábios subitamente intumescidos, a língua fremente e esquiva: os dentes de criança.

Reclino-a sobre o túmulo, ela se deixa deitar, seu corpo está mais quente que o mármore, deito-me sobre Valquíria e sobre o morto, o dia faz-se noite, o mundo já não existe, nenhum mundo.

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Leia um dos poemas de Os sinos de Is, livro inédito de Campos de Carvalho, aqui.

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5 comentários:

Mendonça disse...

Li Vaca de nariz sutil há uns 30 anos. Depois li A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro. Pra mim é o melhor dos três, mas são todos extraordinários. Lembrava vagamente deste capítulo. Como é bom, né? E funciona como um conto, um grande conto!

Luís Paulo Quintela disse...

Demais, demais! Por que um escritor tão incrível é ignorado pela crítica? E as editoras? Tem alguma relançando os livros dele?

Lupe disse...

Que maravilha, Tuca. Estou encantada com o Campos de Carvalho. Depois de ler o post anterior já vasculhei os sebos virtuais e encontrei vários livros dele. Encomendei o Púcaro Búlgaro e A lua vem da Ásia (é bom tb?). Agora vou atrás da Vaca de nariz sutil.

Americo Gentil disse...

Li este texto incrível e fui correndo ler o poema no blog do Hélio Jesuino, mas não encontrei o poema. Esse link tá certo?

heliojesuino disse...

seios que palpitam como rolas que viram pedras que rolam soltas pela fluidez texto.... O cara é foda mesmo! Demais da conta!!

ps.: Américo, faça a a gentileza de rolar a barra, o poema tá lá aguardando sua visita.

abs